O uso de produtos à base de canabidiol ou CBD, um dos princípios ativos da Cannabis sativa -- nome científico da maconha --, foi liberado aos atletas paralímpicos pela Agência Mundial Antidoping (Wada).
A decisão é um alívio para os esportistas. O CBD ajuda a reduzir inflamações, relaxar os músculos e controlar dores. “A substância apresenta todas essas vantagens em relação à recuperação física dos atletas e ainda tem menos efeitos colaterais do que os medicamentos tradicionais”, explica a médica Maria Teresa Jacob, de Campinas (SP), membro da International Association for Canabinoid Medicines (IACM). Sem falar que, segundo a especialista, auxilia no combate à insônia e melhora o foco.
A iniciativa também é um passo importante na luta contra o preconceito. Afinal, ainda é tabu utilizar medicamentos derivados de uma droga considerada ilícita no Brasil.
O nadador paralímpico Talisson Glock, que levou a medalha de prata, em 2016, e de bronze, agora em Tóquio, adotou o CBD em 2020, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a fabricação de produtos à base de cannabis.
+ LEIA TAMBÉM: Vem aí a Cannabis medicinal
, analisa Glock, em comunicado da empresa Pangaia, que fornece o produto. Ele teve braços e pernas amputados após sofrer um acidente.Eu já conhecia o CBD há bastante tempo, mas nunca cogitei o uso no Brasil, porque me parecia algo muito distante e extremamente mistificado. Mas o fato de a Wada liberar o óleo já mostra que eles estão de olho na ciência e querendo quebrar esse tabu
A experiência do atleta fez outros colegas adotarem o tratamento. É o caso do nadador Roberto Alcalde.
, conta o esportista, que também viu melhora nos episódios de ansiedade. Alcalde nasceu com mielomeningocele, uma malformação na coluna vertebral.O CBD tem me ajudado demais na recuperação entre os treinos e, principalmente, na qualidade do sono
Já a gaúcha Susana Schnarndorf foi diagnosticada com atrofia multissistêmica, uma doença degenerativa que não tem cura. Antes triatleta, ela passou, então, a competir como nadadora paralímpica.
Susana encontrou no óleo um alívio para as crises de ansiedade e insônia. Ela sente, ainda, que o tratamento diminuiu o ritmo da evolução da doença.
, declara.Eu não tinha a qualidade de vida esperada só com as práticas convencionais
Como o CBD age?
O nosso organismo tem, acredite, seu próprio sistema endocanabinoide, onde são produzidos moléculas de canabinoides que atuam no sistema nervoso. O CBD, um dos ativos da cannabis, estimula essa engrenagem. Assim, um dos efeitos mais importantes é o alívio da dor.
“A maioria dos atletas paralímpicos passou por eventos traumáticos em suas vidas e podem ter pensamentos obsessivos pelo medo de sentir dores, muitas vezes crônicas”, analisa Maria Teresa.
O estigma e a falta de conhecimento sobre as diferenças entre maconha medicinal e o uso recreativo impedem que mais pessoas tenham acesso a esse tipo de tratamento.
Cabe lembrar que a substância que “dá o barato” na droga recreativa é o THC - e não o CBD. De qualquer maneira, o THC também é recrutado em medicamentos. “Mas em doses infinitamente menores do que na maconha fumada. Aliás, os níveis dessa substância aumentam muito na forma de cigarro por causa da combustão”, ensina a médica.
A cannabis no Brasil
Por aqui, o CBD pode ser encontrado em forma de óleo, cápsula e pomada para lesões. Há até a versão íntima para problemas com libido ou dor durante a relação sexual e também itens com finalidade cosmética.
“Sempre é preciso ter a receita de um médico que vai passar pela aprovação da Anvisa. O cuidado é mais especial para atletas porque o produto precisa vir da indústria farmacêutica com a garantia de que não tenha traços de THC na composição, pois esse erro é capaz de enquadrar o atleta no doping”, esclarece Maria Teresa.
Para o advogado Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB Nacional, o reconhecimento da eficácia medicinal dos canabinoides pela Wada atesta o que a ciência tem comprovado e ajuda a desmistificar desentendimentos sobre o tema.
Já há achados sólidos sobre os benefícios da cannabis para epilepsia refratária, dores crônicas de origem neuropática, Parkinson, esclerose múltipla, autismo, náuseas e vômitos desencadeados por quimioterapia.
No Brasil, a legislação que libera medicamentos à base de canabidiol vem caminhando a passos lentos. Em 2015, a Anvisa autorizou a importação de medicamentos quando feitos em associação a outros tratamentos. Com o dólar nas alturas, só pessoas de alto poder aquisitivo conseguiam ter acesso.
+ Justiça já garante cobertura de remédios à base de cannabis
, elenca Fürst.Apenas em 2020 a agência reguladora autorizou a indústria farmacêutica nacional a fabricar medicamentos com princípio ativo derivado de cannabis, mas desde que o insumo seja importado. Ou seja, seguimos dependendo do mercado externo, da oscilação do câmbio e do frete internacional
Neste ano, a agência nacional permitiu a utilização de mais dois novos produtos à base de cannabis, mas ainda há a necessidade de importá-los. A resolução de 2021 libera outras dosagens à base de CBD, e formulações com concentração de THC de até 0,2%.
“Os produtos com concentrações de THC superiores a 0,2% só poderão ser prescritos a pacientes terminais ou que tenham esgotado as alternativas terapêuticas de tratamento”, detalha a Anvisa em um trecho do comunicado.
Quem utiliza o medicamento em forma de óleo tem algumas opções para consegui-lo no Brasil por um preço mais atrativo.
, explica o advogado.Há como adquiri-lo por meio de associações de pacientes que possuem autorização judicial para plantar, extrair e comercializar o óleo de CBD. Também dá para cultivar a planta e extrair o óleo em casa, mediante liberação judicial